O Projeto de Lei Complementar (PLP) n° 234, de 2023 (Endereço externo), representa uma ameaça à Internet que respeite, cuide e seja justa com a vida das pessoas. O projeto, caso aprovado, além de legitimar as práticas predatórias de captura e uso dos dados pessoais por empresas comerciais e financeiras, também autorizará a entrega dos dados da previdência e seguridade social aos interesses privados do mercado, tudo sob o explícito objetivo de legalizar um mercado de “monetização de dados”.
Quanto se fala de monetização da dados no Brasil, não há como deixar a empresa Drumwave de lado – representada em fóruns de alto-nível do BRICS, com diálogo longo com o Banco Central do Brasil, parceira da Serpro e da Dataprev, bem como subsidiadora do projeto de lei PLP 234/2023. A empresa defende que se o dado é um recurso valioso, o indivíduo que o gera deve ser considerado seu proprietário, participando da distribuição de riqueza gerada. Com isso, os porta-vozes da Drumwave prometem que, por meio da aprovação do referido projeto de lei e do uso do seu serviço de “carteira digital”, as pessoas obterão renda direta oriunda dos seus próprios dados, mas pouco se explicam sobre o funcionamento dessa proposta. Dizem mais, que a aparente propriedade dos dados seria o empoderamento do indivíduo frente às grandes empresas de plataformas e tecnologias digitais, as chamadas “Big Techs“.
As promessas de renda e de empoderamento são falsas. Criar um mercado de monetização de dados é legalizar as práticas predatórias já existentes de captura e uso de dados, como as realizadas por farmácias e mercados que fabricam descontos artificiais¹ de seus produtos para obterem, junto do histórico de consumo, o Cadastro de Pessoa Física (CPF) de milhões de pessoas. Nesses casos, não existe poder de escolha real, negar a entrega dos dados é submeter as pessoas ao acesso mais caro de produtos e serviços. A aprovação do PLP 234/2023 vai ampliar essa lógica predatória² para os dados de transações financeiras, como as transferências do PIX; para os dados da seguridade social; e para os dados da saúde dos brasileiros. E o grave é que as empresas públicas, Serpro e Dataprev, atuam preparando o terreno por meio de estudos e testes para implementação da “carteira digital” da DrumWave³.
Atualmente, dados muito menos “sensíveis” – como o Código de Enderçamento Postal (CEP) – são usados diretamente, por exemplo, em modelos de score de crédito que ditam o limite de empréstimo e a taxa de juros que esse indivíduo irá receber de uma dada instituição financeira. Para uma pessoa com um CEP da Cidade Tiradentes (bairro da periferia paulistana), por exemplo, o modelo deve gerar limites de empréstimo bem menores e com juros exorbitantemente maiores do que para um CEP do Itaim Bibi (bairro paulistana da região da Faria Lima).
Vários dados entram nesses modelos de crédito que acabam reforçando e expandindo desigualdades já estruturais. Afinal, com um limite de empréstimo menor e juros muito mais altos, é muito mais provável que a pessoa não consiga pagar, um resultado que reforça o preconceito inerente ao modelo e o exacerba, já que a informação do não-pagamento vai ser usada para realimentar o modelo posteriormente⁴.
Se o CEP já impacta tanto um modelo de score (e etnia, gênero, idade de cada indivíduo também são dados que acabam entrando em modelos assim!), imagine quando vários outros modelos de negócio forem baseados em dados MUITO mais sensíveis, como por onde o indivíduo circulou na cidade, o que comprou, se está tratando uma doença, se bebeu ou se não bebeu, se dormiu ou não, se pegou carro de aplicativo, para onde, se voltou pra casa, que horas chegou, se recebe atendimento psicológico, ou até informações como fotos, onde as fotos foram tiradas, quem estava na foto, etc.
É possível imaginar os piores cenários se perpetuando e expandindo. Com Inteligência Artificial (IA) já fazendo até seleção de emprego, não é difícil pensar em modelos assim alimentados por dados infinitamente pessoais aceitando ou não a aplicação de um candidato, modelos de precificação de plano saúde, seguro de vida, precificação de ensino, enfim. Se as pessoas se incomodam e se rebelam contra a vigilância quando acontece entre pares, por que não se incomodar com um nível assim tão mais absurdo de vigilância por parte de empresas? É pessoal. É totalmente pessoal e não tem seu interesse em vista, muito pelo contrário.
A ausência de transparência sobre como Serpro, Dataprev e DrumWave conduzem esses testes, em especial no que diz respeito aos riscos à privacidade e proteção de dados, impede um debate público e uma supervisão da sociedade sobre as reais implicações de implementação de uma tecnologia de “carteira digital” voltada à monetização das bases públicas de dados. Diante da ausência de transparência e da defesa da lógica do lucro que esse projeto carrega, a implementação desse sistema de monetização significará mudanças estruturais, de grandes proporções sobre o conjunto da sociedade e da economia brasileiro.
Por isso, as ameaças que o PLP 234/2023 representam à sociedade são³:
- a) a noção de propriedade de dados que o PLP 234/2023, cujo objetivo de abrir canais de exploração aos bancos de dados públicos, atendendo aos interesses de lucro de quem controla a infraestrutura, a “carteira” e o algoritmo de valoração dos dados (DrumWave) e os fluxos transacionados (instituições financeiras)
- b) a privatização da Infraestrutura Nacional de Dados (IND), direcionando os esforços de integração e compartilhamento dos diferentes bancos de dados públicos aos interesses e à lógica do mercado, ao invés do fortalecimento de serviços públicos, gratuitos e de qualidade.
- c) o fortalecimento da agenda de privatização do PIX e do próprio Banco Central do Brasil
Essas mudanças estruturais não podem ser tratadas de forma naturalizada: reduzir a sociedade à lógica econômica de geradora de dados e trabalhadora de algoritmos reforça as desigualdades, as práticas de vigilância e viola a dignidade humana. Transparência tem de ser prática, não discurso: defendemos que sejam realizadas audiências e auditorias públicas e divulgados relatórios abertos e transparentes para que a sociedade tenha condições de dimensionar o tamanho das ameaças. Como alerta a OCDE, “os dados têm valor para consumidores, empresas, governos, atividades de pesquisa e a sociedade em geral, que vai além do escopo das estatísticas macroeconômicas. Os dados também podem gerar valor negativo quando seu uso é prejudicial a alguns indivíduos ou organizações”⁵.
Então, mãos à obra! A discussão é política e não queremos dados como os da nossa saúde servindo para gerar perfis sobre nós que venham nos prejudicar, enquanto se promete renda não comprovada. Se a comercialização de órgãos é proibida, por que legalizar a de dados? Os dados de milhões de brasileiros gerados a partir da prestação de políticas e serviços públicos devem ser destinados ao fortalecimento e a assegurar políticas e serviços públicos, gratuitos e de qualidade.
[1] Rossi, Amanda. Farmácias: você dá o CPF, mas os descontos são reais?. Uol. 15 de setembro de 2023. https://noticias.uol.com.br/reportagens-especiais/farmacias-voce-da-o-cpf-mas-o-desconto-e-real/(Enderelo externo)
[2] Cunha, Fabiana; Coelho, Henrique Pinto; Rachd, Raquel; e Poblete, Hernán. Drumwave: a distopia dos dados-moeda. Outras Palavras. 16 de out
[3] Silva, Victor Hugo. Governo revela projeto para brasileiros ‘venderem’ dados para empresas; entenda. G1. 29 de abril de 2025. https://g1.globo.com/tecnologia/noticia/2025/04/29/governo-revela-projeto-para-brasileiros-venderem-dados-para-empresas-entenda.ghtml(Enderelo externo)
[4] Weapons of Math Destruction, Cathy O’Neil, 2016 – ISBN 0553418815
[5] OECD (2022), “Measuring the value of data and data flows”, OECD Digital Economy Papers, No. 345, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/923230a6-en(Enderelo externo). p. 38.